23.3.10 

Meste Zé (2/5)

Quanto mais penso, mais me convenço (se a frase acabasse aqui também não era mentira) de que, como os restaurantes, só há mesmo o teatro. Há encenadores, há actores, há dramaturgos, há espectadores, há palco, há críticos, há tudo. Só faltam palmas no restaurante e gorjetas no teatro.
O Mestezé, na estrada do Guincho em cima do mar, é o restaurante-revista. Ir almoçar lá não é ir a um restaurante. É chegar e ser saudado por um guarda-carros (que está para os arrumadores como as tradicionais bruxas estão para as tarólogas de unha pintada), um resquício de um país em que poucos tinham carro e poucos se podiam dar ao luxo de ir almoçar à linha. E cuja singularidade era devidamente assinalada ao dono pelo guarda--carros logo à chegada.
Lá dentro, siga a revista. Salas e varanda em dois planos, em tons de verde, num estilo Feira Popular de Lisboa (eterno descanso) com um face-lift Cascais anos 50, ou estilo Caparica-na-Linha.
O serviço é verdadeiramente português: matreiro quando impinge marisquinho e desarmante quando avisa que a sopa de espargos é de pacote. Sopa de pacote, dependendo do berço, pode até ser homely, e fazer uma sopa de pacote tem a sua técnica. Mas não joga. Será preguiça? Blague? Ou seria de lata e não de pacote e, neste caso, ainda um resquício da sopa Campbell’s de espargos como luxo?
Adiante. Um pregado frito interessante com uma açorda bem escura, o mar lá em baixo, a vantagem de o restaurante não se ver do próprio restaurante, as mesas com famílias trans-geracionais, senhoras laqueadas (falo de cabelos e postura, não de entranhas) com leve travo a naftalina e pó de arroz. Famílias clássicas (ou seja, entre avós e netos o plantel foi renovado), criançada, pré-adolescentes loiríssimos que conseguem comer bife sem largar o telemóvel e ir sorrindo para a avó, tudo ao mesmo tempo.
E o linguado com banana? É correr antes que acabe, como a Feira Popular. Linguado delícia, um prato que tem a característica de muita gente pensar que é uma invenção portuguesa (afinal, esta coisa de se copiarem pratos do estrangeiro, jogando com a lusa incultura gastrológica, tem mais de cinquenta anos), mas que estava já no Escoffier (sole caprice). Os filetes tinham o dobro da espessura normal do linguado, mas até os ajudava a sobreviver naquele mar de manteiga (Exxon Valdez da Mimosa). A banana quente, frita, e a manteiga, juntas, são um pequeno fetiche da minha boca, mas que sei pouco exportável para os padrões actuais de deguste. E aqui abusaram da gordura.A sinceridade continua. Sobremesas que aconselha? “Nada de especial, são todas normais”. E eram.
Mas, como aquilo é uma experiência e não um restaurante, há também fotógrafo a tirar fotografias (será que a máquina era pré-digital?) e a criançada perguntava aos avós por que é que aquele senhor tirava fotografias e os avós tentavam explicar, e os netos diziam que sim, com aquele sim das crianças que quer dizer não, que sabe que hoje toda a gente tem uma máquina no telemóvel e na carteira....
E depois o nome Meste Zé, a contracção piadética, que deve ter uma história por trás, sempre a lembrar o Sôzé do avião Sá Carneiro – ou do Saca, já que estamos em contracções –, que puxa sempre ao diálogo bem--disposto, vamos ao Meste Zê? e alguém que não conheça diz ao Mestre Zé, e vamos nós e dizemos não é Mestre, escreve-se mesmo Meste....Se não se importar de pagar muito para uma experiência que vai acabar é ir ao Meste Zé. É liiiiiiiiiiindo.
Lourenço Viegas

Meste Zé
Estrada do Guincho

23.2.10 

Alma (4/5)

Há duas coisas que admiro no Salazar. Uma é nunca se ter casado. Outra é ter passado à história como um livrinho de citações, daqueles que se encontram junto à caixa das livrarias. Disse: “estudar com dúvida para realizar com fé” (naquele falsetto-beirão). Na culinária, a dúvida do estudo, as horas de treino e as tentativas falhadas sentem-se muitas vezes na boca. E – isto percebi há pouco – o estudo do chefe pode sentir-se na virtude, como no erro. A cozinha de Henrique Sá Pessoa, no Alma, é uma cozinha de trabalho, com ligeiras falhas que lhe dão alma (um feijão mal cozido) e muitas virtudes que lhe dão corpo.
Porque estamos na Quaresma, é bom lembrar que o melhor de tudo é a paixão (talvez por isso o outro nunca tenha, em termos de mulherio, passado da dúvida do estudo à fé da realização) e por isso não há Dr. Phil que não aconselhe o casal a redescobrir a paixão (eu acrescentaria, prudentemente, dentro do próprio casal). Ora, é isso que faz o estaladiço de queijo de cabra com cebola roxa que, lembrando que o melhor do estaladiço é o estaladiço, não vem um estaladiço mas vários estaladiços, aumentando assim a proporção da massa (em sentido pasteleiro e não físico--quântico) em relação ao queijo.
Depois, o leitão confitado a baixa temperatura (em rolo), com um cilindro cor-de-laranja de batata-doce (mas que sabia também a abóbora), couve bok choi e uma redução forte. É um excelente prato. O leitão ganha volume no rolo, sem desunião com a pele estaladiça. A couve bok choi, que normalmente está nas ementas apenas pelo nome (duvida?) e que é dos legumes o suplemento de transportes do Público, tem aqui uma função de falso-equilíbrio. É o verde num prato laranja, que hoje todos os pratos têm de ter verdes como toda a americana tem um piercing no umbigo, mas um verde que não estraga. É uma falsa couve, que não sabe a couve, que se trinca, que absorve o molho e que dá uma boa textura ao prato. A couve é a crosta da batata doce. É um prato forte. Não pensem as senhoras que não gostam de leitão que este leitão sabe a pato, porque não sabe. E não é porque o chef tem pinta, nem porque há uma nuvem de algodão doce enorme pendurada no tecto da sala, e porque a Nini ama o Alma, que a Mealhada fica mais Estoril.
A lasanha aberta com vitela desfiada e queijo taleggio é um belo guisadinho (lasanha aberta é uma contradição nos termos, mas é melhor do que a comprimida, feita no prato de louça que lhe dá originariamente o nome). Uma surpresa, redonda, conchavada, profunda, a carne tenra, a massa no ponto, o queijo a unir, um prato de Outono que aguenta todo o Inverno. No Alma, a única coisa que não se aguenta são os ares dos empregados (excepto um). Mas será que já vêm assim? Ou dão-lhes formação para parecerem enjoados, com uma passividade agressiva, monocórdicos, sobrancelhas franzidas, a servirem a água com a brutidão de quem apaga um fogo num sofá inflamável onde caiu uma beata acesa?...
Pesporrência de libré, que a clientela subserviente (literalmente) aceita, uma parte porque acha que é muito difícil conseguir mesa no Alma e acha que nos restaurantes bons deve ser mesmo assim, outra parte porque tem vergonha de volta e meia ainda pensar que o que era preciso era um Salazar para endireitar isto tudo. O chef ajudaria se, quando desce à sala, cumprimentasse todas as mesas, sem preferidos e enteados. Nisto tudo, lá se vai uma estrela. Mas sem ressentimentos, que as sobremesas e o preço justo deixam a boca quente e a alma apaziguada com um restaurante por vezes demasiado humano.
Lourenço Viegas

Alma
Calçada Marquês de Abrantes, 92 (Santos)
Lisboa

15.2.10 

Panorama (4/5)

Durante muitos anos confundi certas coisas opostas. É estranho isto de caldear, misturar, tomar uma pela outra, coisas que são em tudo diferentes das outras. Acontecia-me com o João Braga e o Carlos do Carmo. E com o Ritz e com o Sheraton.
Mas são opostos, as vistas, a classe, as pessoas.
Fala-se muito da vista do Sheraton. Mas as vistas não são coisas de falar, mas de ver; ou melhor, como o nome diz, de serem vistas. E a vista do Sheraton não é boa de ser vista. É boa de se ver, mas não de ser vista. Uma boa vista deixa-se ver, de mansinho, devagar. A do Sheraton impõe-se, na cara, aquela sensação primeira vez em Nova Iorque, a posição esdrúxula do mono, a dar-nos uma perspectiva pouco comum da cidade (faltam referências, pontos, linhas). Depois aquele bar, antes do restaurante, com um piano transparente. Percebo pouco de bares de hotel, e menos ainda de pianos transparentes, mas um bar num último piso de um hotel com um piano transparente é sítio onde não me sinto tranquilo.
Não sou crítico de hotéis (se a independência é rara na crítica de mesa, dizem que na imprensa de cama é como a liberdade de opinião na Coreia do Norte – estar aqui a escrever Portugal corria o risco de desactualização da piada e sei que estes textos hão-de um dia acabar nos manuais escolares), mas se fosse crítico de cama não podia deixar de notar os borrifadores de cheiros junto às colunas que volta e meia dão um traque floral pssssss-pssssss.
E já vai grande a introdução e até parece, e é verdade, que ando para aqui a querer fugir a falar da comida (lembro aqui uma crítica ao Tavares num soalheiro semanário em que o crítico dizia numa linha ah isso da comida não estava ao nível mas também pouco importa e siga...). É que a comida do Panorama do Sheraton (com o chef Leonel Pereira) está entre o boa e o aceitável. Tem coisas boas e tem coisas normais.
Naquela sala com vista, mais disfarçada do que no bar do piano transparente e dos borrifadores automáticos, são bons os pedaços de foie-gras lacado com vinho, bem escolhidos, limpos, no ponto, mas as farófias de vinho do Porto branco (mas de aparência tinta) adiantam alguma coisa? Em textura (demasiado idêntica)? Em sabor (o sabor da farófia é conhecido...)? O que vale é que uns camarões da entrada, rijos, grandes, corados ou mesmo vermelhos, mostravam o melhor lado da carta. Lado também à mostra no atum, de duas categorias, da barriga e do lombo (?). Na barriga, as linhas de gordura eram evidentes, tornando mole o interior daquele belo cubo, em oposição a um exterior tostadinho. Também bom estava o lavagante azul (mas a cada trincadela, a lembrar-me daquele capitão na Guerra a dizer que no mato não se pode comer nada azul e o furriel sempre com a mesma resposta, de que no mato nada era azul). O bife wagyu é uma coisa interessante, mas falta-me bitola para saber se é sempre assim para o normalzinho ou se era apenas a este que faltava qualquer coisa. Sobremesas normais, com nomes pretensiosos.
Boas opções no menu de almoço, mais barato. Talvez por ser o Steven Seagal que está nas cozinhas, é sempre melhor escolhermos o mar sobre a terra, ou seja, o peixe sobre carne. Ham?! Sim, o chef Leonel Pereira é gémeo do Steven Seagal (google images) e este fez, em 1992, o Força em Alerta em que era um marinheiro que salvava mundo (imdb). É preciso explicar tudo?
Lourenço Viegas

Panorama (Hotel Sheraton)
Rua Latino Coelho, 1
Lisboa

9.2.10 

de Castro (4/5)

Juntando a inexorável passagem do tempo, a finitude do homem, a inconstância da mulher e o preço do metro quadrado em Lisboa, não teremos que todos os restaurantes são circunstanciais, coisas sujeitas a passar? Os restaurantes de hoje não serão todos as parafarmácias de amanhã?
A circunstância é o aqui e agora. E aqui e agora faz todo o sentido o restaurante de Castro, na Elias Garcia. É o restaurante certo, à hora certa, no local certo. Em Lisboa, há poucos sítios de fronteira, como o de Castro, em que se come bem, por pouco dinheiro, sobretudo se estivermos a falar de uma comida simples, que nos atira sempre para locais de luz de bloco operatório, ementas em plástico em que já-não-temos os únicos pratos que apetecem. O de Castro está no local certo, precisamente porque está numa zona de Lisboa onde não se pode comer simples sem ser mal, nem bem sem ser demorado ( e bem aqui é relativo, é o Polícia), ou pizzas (La Finestra).
Junto à Gulbenkian, no fim da Elias Garcia, pode comer-se a qualquer hora entre o meio-dia e a meia-noite. E só isso já é notícia. Num país que odeia horas e adora horários (horários de afixar na porta, horários de fecho, bem entendido), um restaurante que não fecha e onde não há trombas se quisermos comer às seis da tarde, sem termos de ver os empregados a jantarem na mesa do fundo e ser servidos por favor, é uma coisa espectacular (como o chefe associado ao restaurante é do Porto, uso aqui um adjectivo que se ouve mais no Porto do que “isso” no Brasil).
As iscas do cachaço de bacalhau são cubos panados de uma carne de bacalhau com mais gordura do que o habitual, muito boas. A maionese de camarão e ovo é simples e agradável, para picar. As amêijoas com feijão manteiga são uma combinação interessante, mas já apanhei o prato mais consistente e com as amêijoas menos feitas do que das últimas vezes. Excelentes pezinhos de coentrada, desfeitos e desossados, em papa com coentros, ligeiramente avinagrados. O bolo de chocolate sem farinha pesa pouco, mas esfarela um pouco. O toucinho do céu é bom, mas vem com gelado (ou seria o bolo de chocolate? Ou ambos?). O gelado está hoje para as sobremesas como a cenoura ralada para a comida de cafeitório (sim, querida, sei que me tem pedido que invente palavras, tome lá esta), e é sempre quem não pede a coisa que come o acessório, que está ali para que se não diga que não está, mas sem qualquer sentido. Sei que exagero, que muita gente acha espectacular que tudo venha com uma bola de gelado. Até gelado de morango vem com uma bola de gelado de baunilha a acompanhar. Mas tenho sempre fé em que as pessoas aprendam.
No de Castro da Elias Garcia o serviço é simpático, mas tem falhas. Dizia a minha tia, não sirvas a quem serviu (cruel verdade), mas nisto dos restaurantes é mais não sejas servido por quem não serviu, com muitos esquecimentos, timings errados, paragens absortas. Nada de grave, mas a precisar de chicote.
É um restaurante em que se consegue boa comida por preços (realmente) baixos, onde ninguém parece importar-se que apenas se vá lá picar e beber um copo de vinho, um restaurante que não fecha. Enfim, tão pouco português que parece mentira.
Lourenço Viegas

de Castro
Av. Elias Garcia, 180 B (junto à Gulbenkian)
Lisboa

2.2.10 

Feitoria (5/5)

Há formas opostas de se perguntar a mesma coisa. Nos restaurantes, o que elas mais perguntam (além de se já conheço o sushi alentejano ou outra parvoíce do género) é como é que eu sei se um restaurante é bom. A pergunta é imbecil. Mas quando saíamos da Feitoria, no Hotel Altis Belém Spa (todos os hotéis são spa), esta ela, que até aí não tinha perguntado nada, disse não percebo por que é que o Lourenço agora adora estes sítios que não falham. Perguntou sem perguntar, saltando a pergunta e a resposta. A comida do chef Cordeiro tem poucas ou nenhumas falhas. Concepções testadas, execuções perfeitas. E ela percebeu isso. O que ela não percebeu é se íamos tantas vezes ao Feitoria por ser boa, ou à espera de que falhasse (omissão voluntária de pronome marca a ambiguidade da frase).
Vieira em cima de um carpaccio da mesma, num blini espesso, ovas, flores, pequenas ervas, tudo montado num prato de xisto preto, aqui uma base perfeita para uma pirâmide de sabores. Pirâmide não apenas como imagem barata para descrever o volume da coisa, mas sobretudo por ser um prato piramidal no que toca aos diferentes sabores, às temperaturas, ao sal, ao cozinhado e ao fresco, à intensidade.
O salmonete com espargos, foie-gras e lingueirão nunca falha. O fígado na continuidade daquele sabor que só o salmonete sabe. O espargo a dar textura e também a permitir rememorar, depois no xixizinho, de onde é que vem este cheiro, ah é daquele belo salmonete.
Peixe-galo em beurre noisette, spätzle de espinafres e amêijoa, tomate cereja e acelga, com a manteiga tostadinha a ir buscar o melhor do peixe, com os mareados protegidos pelo espinafre e amêijoa. Estes vinham num spätzle, que é uma pasta de ovo do sul da Alemanha, aqui servidos em forma rectangular e espalmados (o normal são uns cilindros muito toscos) É, eu sei que não deviam dizer-se as coisas assim, que devia diluir tudo nos elogios ao serviço, mas não é do serviço que quero falar – que é bom, que é sorridente, que tem aquela descontracção plebeia de quem sabe que a comida é boa e não leva a sério a cagança de alguns dos comensais –, é mesmo dela. No Feitoria, se tivermos sorte com os turnos, se tivermos sorte com a mesa, trabalha uma das mulheres mais bonitas ponto. Serena, distinta, de rabo-de-cavalo. Não ri, sorri. Não anda, desliza. Não mostra, esconde. E foi das últimas vezes que a vi a ela (que ela a nós olha-nos sem nos ver) que a coisa fez sentido. A Feitoria, nome-conceito de arquitecto de interiores, com aquele painel namban, ou qualquer coisa do género, a puxada revivalista ao mundo português (ah, o poder, ah, a glória), o chef Cordeiro a ter de enfiar nos pratos elementos-império, o café de Timor e mais não sei o quê, tudo aquilo foi perdoado, com a Tanegashima connection. Aquela geisha vale termos levado a pólvora ao Japão.
Também ela é viciante, sem alaridos, sem falhas, que até chateia, como a cozinha do chef Cordeiro a que dá o seu mover brando e piadoso. Nos restaurantes, como nas mulheres, o que atrai é o que repele, com uns anos de intervalo. A vantagem dos restaurantes sobre as mulheres é que raramente se frequenta um restaurante o tempo de uma mulher e por isso espero continuar a comer o Chef Cordeiro (bota salvo seja nisso) sem que tanta perfeição me enfarte.
Lourenço Viegas

Feitoria
Doca Bom Sucesso (Hotel Altis Belém)
Lisboa

26.1.10 

100Maneiras (4/5)

Há palavras que valem mais do que mil palavras: low-cost e sem maneiras. Tudo isto a propósito do 100 Maneiras no Bairro-Alto, na Rua do Teixeira. Low-cost porque uma refeição de baixo-custo custa o preço médio de um voo low-cost para Bruxelas (quase cinquenta euros – com vinho). Sem maneiras, porque não há cem, mas apenas uma maneira de comer naquele restaurante de menu único (que vai variando).
O começo, com o bacalhau desideratado (com dois ee), num estendal, lembra- -me um tio que tive (com o relaxamento de costumes das últimas décadas, uma irmã de mãe pode dar-nos numa vida tantos tios como carros) que com o mesmo truque de cartas surpreendia sempre. Desta vez, o bacalhau soube mais a bacalhau, o molho ligou melhor. E lembra-me como é bom a roupa no estendal, chapa de um país em que ainda há pessoas que lavam e torcem e estendem e apanham e passam e dobram e arrumam e escolhem a roupa para outras, num acto de entrega repetido, menorizado por culturas latitudinalmente superiores onde não há sol, nem casas, nem lençóis de cima, nem nódoas de azeite de bacalhau na camisa.
Depois, uma sopa de lentilhas com caril e espetadas de chouriço envolto em pão fino. A sopa agradável, mas menos saborosa do que devia, algo baça, que a lentilha é como a libanesa, sempre precisa de uma faísca para que a beleza de base não se apague no meio de um exotismo pastel tão ocre e tímido.
O oposto desta indefinição numa sopa de cavala fumada com caviar e natas azedas, com rúcula emulsionada, excelente. A base muito ómega3 (é escusado nos emails de insulto ao crítico dizerem que o ómega3 não sabe a nada, que ele sabe), gordura de peixe, substancial, aveludada. Em cima, as bolinhas de caviar, com as natas a cortar, a rúcula meio a enfeitar, meio a cortar, meio a puxar o sabor para cima na escala de graves e agudas da música que ouço na câmara da boca quando como pratos destes.
Excelente garoupa em caldo de amêijoas, simples.
Depois, um shot de espuma espumante (?) para limpar o paladar. Técnicas de catering de tenda de festas em Caldas da Rainha, mesmo antes dos noivos projectarem um powerpoint com fotografias do passado, ela bem boa naquelas férias com os primos em Altura – ele ainda com sapatos de verniz no casamento do tio mais novo, mostrando urbi et orbi uma modéstia que um curso e profissão de sucesso tentam esconder. Preparar o paladar numa refeição, como limpar antes de uma nova relação, são técnicas de ruptura que renegam a unidade da refeição, a justaposição de sabores, o sentido do todo.
Ainda por cima, limpar antes da carne, só realçou que aquele borrego, médio-mal passado, com uma crosta de pistáchio, interessante, lembrava demasiado o celofane amarelo que não queria largar o nógá no intervalo da tarde de domingo. No 100 Maneiras, a carne nunca acompanha o resto.
Pré-sobremesa (conceptualização de pacotilha) foi uma excelente mousse de requeijão e abóbora. Melhor do que a pós-pré-sobremesa, uma desconstrução de pastel de nata com café, uma incursão no pior da cozinha da moda, uma esfera de café desagradável, o resto com pouco sentido.
Sem escolha e a preço elevado, o 100 Maneiras não deixa de ser um bom restaurante, dos poucos em que o ambiente e a atitude são salvíficos de uma comida com oscilações. O ambiente é descontraído e muito agradável, o serviço sem caganças e com maneiras.
Lourenço Viegas

100Maneiras
Rua do Teixeira, 35 (Bairro Alto)
Lisboa

19.1.10 

Tasca da Esquina (5/5)

Só sei que gosto realmente de alguém quando passo a gostar do que não gostava. Tive uma mulher que foi coentros. Outra foi sandálias. O Vítor Sobral foi Campo de Ourique. Ali, entre a Domingos Sequeira e a Saraiva de Carvalho, está a Tasca da Esquina, que me reconcilia, a cada almoço, a cada jantar, com um bairro com que sempre embirrei.
Tenho dois problemas graves com o Vítor Sobral. Um é que nunca sei se Victor é Victor com c e sem acento, ou se é Vítor sem c e com acento. O outro é que não consigo deixar de achar que o seu último restaurante é sempre melhor do que os outros. E, já que penso nisso, o segundo problema são dois problemas (e por isso tenho ao todo não dois mas três problemas) – é que esse restaurante é melhor do que os outros-dele, mas também do que os outros-dos-outros.
É como com a Carla Bruni (e foi a maneira de usar como e Carla Bruni apenas a quatro caracteres de distância, sem espaços, porque caracteres com espaços eram mais) com quem também tenho dois problemas. Com a Carla Bruni também nunca sei se é Bruni com um n ou Brunni com dois ns. O outro problema com a Carla Bruni é não saber se gosto mais de a ver se de a ouvir. Quando a vejo é claro que é de ver que eu mais gosto; quando a ouço é claro que é de a ouvir, aquela voz arrastada direita à hipófise, que canta só para nós...
A Tasca da Esquina são duas salas, uma de entrada com mesas altas, um balcão à esquerda e uma cozinha à vista. A outra é uma marquise, ou coisa que deve ter um nome arquitectonicamente mais sexy (mas para termos de arquitectura, há praí críticos gastronómicos que são verdadeiros Corbusiers). Marquise no bom sentido, uma sala de tecto mais baixo, percorrida com janelas, em que se pode comer agradavelmente. E isto é que surpreende à partida nos restaurantes de Vítor Sobral, é que são sempre agradáveis de lá se comer. Mesmo no Terreiro do Paço, meio desengonçado, meio escuro, com aquela escada a meio, queloide de transplante de coração, era agradável lá estar.
Se chove, estamos ali como num escafandro, se faz sol, como num carro com ar condicionado, a ver o mundo lá fora e a organizar o mundo cá de dentro a cada garfada de um camarão com alho, excelente, em dose de tamanho certo. Enchidos bem escolhidos, requeijão macio. Berbigão fresco, com líquido por dentro, sem ser preciso estar numa esplanada de praia. Bolo de chocolate fofo, sem farinha, sem encher, mas sem ser de ar, e um pudim abade de priscos, rico, homogéneo. Na Tasca da Esquina há três hipóteses (uma carta com pratos mais substanciais e clássicos do Chef – a raia é sempre uma boa hipótese), um menu de petiscos (em várias incursões, só tive um percalço com uns rabinhos de porco demasiado duros – devem ser a desfazer-se, para chupar), ou, então, deixar-se nas mãos do chefe e da cozinha, que eles tratam de si, escolhendo quanto se quer gastar, 15, 20, 25, ou 33 euros. O que varia é apenas a quantidade de comida, sempre a uma qualidade excelente.
Como é o último, a Tasca da Esquina é o melhor restaurante de Vítor Sobral e dos melhores de Lisboa. Ali é que ele começa a ser quem é. Vítor Sobral é um chef de gaveto, porque Portugal é cozinha de esquina. Já escrevi que vejo Vítor Sobral, o grande chef, numa cozinha de aldeia, fumegante, com cinco ou seis quartos para dormir, lareira enorme. A Tasca da Esquina pode bem ser a sua última paragem em Lisboa, rumo à paisagem. É aproveitar.
Lourenço Viegas

Tasca da Esquina
Rua Domingos Sequeira, 41C (Campo de Ourique)
Lisboa

22.12.09 

Casa da Comida (4/5)

O pior de estar quase a chegar o fim do ano é também estar quase a chegar o fim de ano. Se houvesse fim do ano sem fim de ano, era só fim sem dano. Mas se o criador queria, deu-a mesmo, neste loucura de dois feriados, um Natal e um fim de ano, que matam num mês o que ele devia ser. E os restaurantes também sofrem de jantares de Natal da empresa, da ex e da tia dela, da festa da escola ao jantar do escol. Fazem dinheiro. Mas é complicado ter-se uma refeição tranquila.
Mesmo assim, a Casa da Comida continua a ser um bom abrigo. Um abrigo estranho, cada vez mais completo, mas cada vez mais complexo. Já não é só um restaurante clássico, sólido, chique. Além das pratas, tem pratos. Fluem-se as fronteiras, perde-se exactidão. A exactidão já não é o que era. Um exemplo, antes de voltarmos à Casa da Comida: 2009 é o ano em que acabou a saia. Hoje tudo é pernas, e os collants são calças e as calças collants e a saia só lá está a fazer de papel de embrulho. E isto é bom ou é mau? A casa da comida deve ser o bacalhau e o empadão, ou deve ser a comida nova de Bertílio Gomes que agora por lá se serve? Deve tentar ser os dois?
Começa com uma entrada do chef boa: bola de queijo de Arraiolos e maçã, copo de castanhas, cogumelos e natas, e, por fim, uma morcela e mousse de favas, da esquerda para a direita, em crescendo de intensidade e de interesse. Um aviso de que vem aí comida séria (no menu de degustação de 50 euros).
A terrina de foie-gras com figo deve ser comida nas tostas que trazem para a mesa, belíssimas e banais, a lembrar hotel de termas, em termos, finas, triangulares.
O fígado untuoso, fresco em idade, numa boa temperatura (mais fresco do que o ambiente, mas sem gelar a boca) estava excelente em sabor. Tenho dúvidas quanto à ligação com o queijo de figo, a erva-doce a bayardizar o sabor, o doce a sobre-impor-se (mas são feridas antigas, abertas no meu palato, isto de saber se o fígado liga bem com doce, e achar que não, que são mariquices inventadas pelos donos dos sauternes).
Mas a garoupa, essa não deixou dúvidas: cupeta de ibérico (duas fatias finas fritas e estaladiças do que parecia ser um paio de porco) em cima de um generoso pedaço de garoupa fresca, molhada, ainda rija, mareada, com ervilhas no ponto, tudo servido em cima de um caldo de ervilha, verde num sabor misto de água e terra. A surpresa em culinária tem sempre uma mãe complexa, a criatividade do chef que apanha na curva a ignorância do crítico, que o deixa sem referências para aquele prato. E isso é um sintoma de hoje. Para Calvino (o Italo), a praga que atinge a nossa era passa pelo “embotar da expressividade, extinguindo a faísca que se solta do embate das palavras com as circunstâncias novas”. Também na culinária, pouco do que é novo faz soltar esta faísca (muitas vezes, o novo é apenas a faísca, sem a substância, é o efeito forçado de causa nenhuma). Mas aqui havia substância, novel combinação (que, repita-se, vai sempre beber um pouco da ignorância do comensal) e, portanto, faísca.
Também faísca na muito boa a cavala “fumada” feita dentro de uma cataplana, em cima de uma pedra, com fumos de ervas aromáticas aquecidas que infundem o filete (sem ficar demasiado presente um travo a banho turco), e que desce ao prato para uma espuma e uns grânulos estaladiços de pão e um belo feijão tipo frade.
A bochecha de vaca feita em vinho tinto estava interessante, profunda, mas demasiado feita (textura homogeneizada, a aproximar-se da textura de língua). Sobremesa de frutos vermelhos e merengue doce, mas com demasiadas ideias num único prato.
A sala é requintada e o requinte é sempre coisa que atrai e afasta, como a própria palavra requinte e os usos que dela se fazem.
O serviço é simpático e eficiente, português da velha guarda. Os empregados têm uma ideia apenas superficial do menu de degustação (que já agora, custa 50 euros), e esquecem-se de explicar os pratos.
A cozinha de Bertílio Gomes continua a ser uma cozinha substancial, pensada, com faíscas conceptuais. Bertílio não precisa do fogo preso que tanto ilumina (cegando) os gastrólogos de serviço. Talvez precise de um restaurante só seu, com empregados que lhe conheçam a comida. Um restaurante em que a sua cozinha não seja os collants que expulsam a saia e ainda têm de conviver com ela.
Lourenço Viegas

Casa da Comida
Travessa das Amoreiras, 1

20.10.09 

Fortaleza do Guincho (5/5)

A Fortaleza do Guincho é dos restaurantes com melhor alta-cozinha em Portugal. Sólida, constante, profunda. Uma cozinha de fogão e não de papel de jornal ou revista. Pouca invenção oca. Chef ou chefs que estudaram, praticaram, viram e comeram, antes de porem no prato coisas pensadas e testadas.
Na Fortaleza do Guincho, fico sempre intimidado pela fortaleza. Como se estivesse a entrar de dia numa discoteca construída sem licença nos arredores de Peniche, daquelas que aparecem nas notícias quando é morto o segundo cliente do mês por um segurança, ou o contrário. O ideal era entrar directamente para a mesa (mesmo o hall, se pudesse, passava) de cabeça tapada...
O nome também não ajuda (mais apropriado a venues s&m). Nas paredes, pouco sentido fazem as imitações de quadros famosos (imitações só talvez façam sentido quando os originais estão no cofre, ou na parede de algum museu). De resto, é tudo quase perfeito. A sala, como certas mulheres, é menos séria do que parece.
Os empregados articulados, profissionais de simpatia, a aparecerem só quando detectam qualquer falha naquelas mesas bem postas. Um pão excelente, uma manteiga a condizer. A vista atlântica, cabine no mar a deixar terra, o verdadeiro oceanário. Um restaurante para a estocada final num contrato difícil de fechar, numa mulher difícil de ganhar (abrir, significando começar, contrastaria com o fechar, mas pareceria brejeiro).
Um borrego excelente, estaladiço, no ponto certo, com sabores de alecrim e funcho a envolverem, bons legumes guisados. É bom comer borrego a ver o mar. Ou não é tão estranho como pareceria. Borrego normalmente pede chuva a metralhar árvores, terra húmida, vento. Mas não é isso o Guincho, a areia, as ondas, a ventania.
Os peixes sólidos, o robalo cozinhado com elementos da terra (girolles, louro, batata), fresco, real, a manter o sabor.
Na maior parte dos restaurantes que entram nas modas e nas ondas, as sobremesas deixaram de ser reais e passaram a ser um pretexto para um nome e um prato de boa aparência a saber a açúcar e a fruta. É um pouco como o que está a acontecer à arquitectura, em que às casas de viver, se prefere um estilo cabine de tradução simultânea, caixas de sapatos com frisos rasgados a fingir de janela junto ao telhado. Na Fortaleza do Guincho, a sobremesa ainda é de comer.
A tarte fina de marmelos confitados com um gelado de baunilha e molho de marmelo, pequena, redonda, os marmelos em escama, símbolo de perfeição e sabor de redenção.
Brioche assado com cerveja e pêra assada que anima a alma sempre em busca de sobremesas- -comida (o gelado do cerveja que acompanhava surpreende, mas não convence). E a melhor sobremesa de café, uma geleia de café e caramelo, com streussel de chocolate, leite com cacau e gelado de moka.
Num copo cónico de vidro (se me recordo bem), todas as minhas faces do café, todas as idades, todos os momentos, em camadas, que com a colher pazinha de arqueólogo podemos separar ou misturar.
É à volta de cem euros por pessoa, meia hora para lá, meia hora para cá, cinco estrelas sem qualquer dúvida.
Lourenço Viegas

Fortaleza do Guincho
Estrada do Guincho, junto à praia do Guincho (Cascais)

6.10.09 

Cantinho das Freiras (3/5)

O self-service da Travessa do Ferragial cheira a colégio. É num edifício velho como um colégio. Tem freiras como um colégio. E a comida sabe a cozinha de cantina como num colégio. E como os colégios são os campos de concentração permitidos pela sociedade, tudo o que cheira, parece e sabe a colégio é um nó no estômago que cheira a apara-lápis no fundo do estojo, ou um calduço que sabe a arroz de bofes.
Mas isto é um problema meu, bem sei. O Colégio dos Carvalhos não foi toranja doce. Adiante. Sempre que vou às freiras das belas-artes fico sem saber o que dizer. As senhoras são simpáticas, são. A vista é boa, é. A causa tem interesse, tem. Mas tenho sempre, já lá vão mais anos do que gostaria, três engulhos com as freiras do Chiado.
1.O self-service. Nunca um buffet, por melhor que seja o hotel, ou self-service, por melhor que seja a cantina, há-de ser bom. É um exame ao grau de comportamento obsessional-compulsivo de cada um: não esquecer o pão, ou o guardanapo, ou abrir a carica do Sumol. E o café pede-se antes, ou é depois noutro sítio. Equilibrismo. A faca que escorrega, o copo que cai no contragolpe para conter a sopa na tigela (normalmente grossa e esboicelada) e depois ter de comer no tabuleiro (como no avião), com o bife de cebolada a rir-se para nós enquanto comemos a sopa e a cada fumegação a suspirar estou a arrefecer, vais comer-me frio se não te despachas. A mousse de chocolate, segunda mulher de um velho amigo, enquanto mascamos a patanisca velha, ali, estática a olhar, na mais provocante das atitudes. E se vamos à mousse antes de acabarmos a patanisca velha, está tudo estragado. Uma baralhação.
2. A comida é de cantina. Não é boa. Nem má. É razoável, diversificada. Todos os dias um prato de carne, outro de peixe, uma sopa, gaspacho no tempo quente (com pouco tempero), uma sobremesa. Tudo com bebida, por volta dos oito euros. É barato. E ajuda-se uma obra de apoio a jovens mulheres.
3. O terraço. O terraço, oh o terraço, o terraço. Comer num terraço em Lisboa é tão bom como ler na praia, ou ter sexo na piscina (fazer amor pareceu-me que não casava com cloro). São coisas mais de dizer do que de fazer. Lisboa tem sol. O sol bate na cabeça, bate na comida. A temperatura do corpo aumenta. As papilas gustativas querem água e não rissóis. Talvez a salada de alface com aquele vinagre forte de cantina, que deve recozer (também podia ser com s) a parede do estômago. A vista é muito boa, mas para quê almoçar ali? Tomar pequeno-almoço, sim, antes do zenith fatal. Comer nas últimas mesas viradas para o terraço, talvez.
Lourenço Viegas

Cantinho das Freiras
Travessa do Ferragial (Chiado)
Lisboa

22.9.09 

Brasserie Flo (3/5)

Mesolítico. Sexo. Diarreia. Pérola. Poucas palavras são tão ricas em sentidos e imagens como ‘ostra’. Ostra é uma sonoridade séria. A concha e o corpo da ostra são sérios. Tons deslavados. É como olhar para os olhos do avô, com cataratas, depois de tomar LSD. Em Portugal comem-se poucas ostras. É um nunca experimentei mas não gosto. Arrisca-se pouco. A malta tem nojo. Compreende-se. Uma ostra é uma escarreta a saber a mar envolvida numa pedra rafada. Ostra é lostra.
A coisa melhor da Brasserie Flo foi ter devolvido as ostras à cidade, dez mil anos depois de os concheiros as devorarem espalhados pelo mesolítico (a pré- -história é sempre lugar e não tempo, mapa e não calendário), ao longo do Sado. E vieram estas ostras de torna-viagem pelas mãos francesas, para uma das salas mais agradáveis da capital, o antigo Beatriz Costa do Tivoli. Foi uma jogada inteligente. Um restaurante-marisqueira-cervejaria, com posters de filmes nas paredes (non sense). Chefes de sala que franzem os sobrolho quando não se traz reserva como se fosse difícil em tempos de crise e no Verão uma mesa disponível numa sala meia vazia. Aliás, a pergunta é sempre imbecil, já que a malta que reserva gosta de exibir sonoramente a reserva logo à chegada – uma mesa para quatro em nome de Bernardo Gusmão, está marcada (leia-se a minha estagiária telefonou).
Quem não fala e pede uma mesa não tem reserva. É o oposto dos consultórios médicos. Na Brasseire Flo há muitos tipos de ostras. E se há coisa que Portugal tem bom são as ostras de Setúbal. Carnudas, esverdeadas, portuguesas. Não sei se sabem mais a rio se sabem mais a mar. Altas, mais dóceis ao garfo que as repuxa inteiriças.
As ostras são perigosas. Podem intoxicar. Arrepios, diarreia, febre, suores. Tudo vem do cuidado na escolha do produto. Uma espécie de roleta russa do gosto. Não há apreciador de ostras que não tenha passado uma tarde em sofrimento. Os clientes do Fat Duck que o digam (eleito pela imprensa deslumbrada como o melhor restaurante do mundo fechou recentemente por sistematicamente intoxicar os clientes com ostras – é a versão oficial, pelo menos). Na Brasserie Flo, correu tudo bem neste ponto.
E uma degustação de ostras por 17 euros é justo.
Há quem invente: limão, vinagretas. Tretas. Ostra é ostra pura e crua, como Deus a fez. Por vezes bebo a água que fica no graal. Outras vezes, não. Depende se está muito salgada ou não. Nada de champanhes, ou cervejas. Uma vida de ostras tende para a ascese.
As outras comidas da Brasserie Flo alternam entre o razoável e o bom, sempre muito caras. O risotto de vieiras estava agradável – mas de quanto vale uma vieira depois duma ostra? O onglet banal. A choucroutte pesada. Nas sobremesas, Baba Bouchon com rum muito bom, aberto ao meio e regado; mousse de chocolate branco sem história.
Serviço à antiga portuguesa. Tenso, discussões abafadas entre empregados. Pouca comunicação entre os sectores.
Sala grande e agradável. Gente que gosta de ser vista com a gente com quem está. Entre, e embebede-se de ostras. A qualquer hora, porque o restaurante não fecha. Se ainda tiver fome, vá jantar a outro lado. Mas atenção, comida depois de ostras é Sumol depois de xerez.
Lourenço Viegas

Brasserie Flo
Avenida da Liberdade, 185 (Hotel Tivoli)
Lisboa

4.8.09 

Uma espécie de chinês (4/5)

Ela insistiu. Tinham-lhe falado e eu ia adorar. Era um restaurante mas não era um restaurante. Era numa rua da Mouraria mas não era bem na rua (era num primeiro ou segundo andar). Era um restaurante chinês sem ser um restaurante chinês. Eu disse que não tinha interesse, que só a palavra Mouraria soava a mijo de gato. Mas ela insistiu. E quando uma mulher insiste, ou se resiste, ou se desiste (e tão curta a diferença do r para o d), e as resistências geram demasiado calor e energia para o estio que se atravessa. Lá fomos. Carro no parque de estacionamento do Martim Moniz. A luz límpida de Lisboa, que é tão rara no alto Verão, tornava tudo mais legível (“o Verão torna as cidades mais legíveis”, Carlos de Oliveira num poema qualquer).
Ela queria conversa. Fui-lhe dizendo que me estava a repetir, mas que para mim os restaurantes são as amantes dos homens sérios. Foi talvez por isso que fui. Ainda lhe disse que a relação que temos com os restaurantes (muito mais do que com a comida) vai-se parecendo à maneira como encaramos o sexo. Há quem não coma fora, quem tenha deixado de comer. Há quem coma mais, quem coma menos. Há quem vá ao sábado (há mesmo quem vá a todo o santo sábado), quem prefira à semana (à semana...). Há quem vá sempre ao mesmo, quem varie (é campo basto para a metáfora e paráfrase brejeiras). E eu com a idade, vou perdendo o interesse pelos mesasutras, restaurantes com complicação, caças ao tesouro para as melhores amêijoas, no meio da serra da Gardunha, num tasco infecto que só serve amêijoas, quando há, mas que é do melhor, disse-me o cunhado da minha prima que vai lá todos os anos, 300 quilómetros só para comer as amêijoas.
Ela estava impaciente. Umas ruas esquerda, direita, drogados, mijo de gato, uma Lisboa que permanece, Pompeia viva, um prédio, limpo, escadas uma porta aberta. Chineses por todo o lado. Sorrisos. Afinal não era um verdadeiro restaurante chinês. Várias salas. Uma ementa numa mica de plástico amarrotado, escrita num português de Ferreira Leite. Tsing taos na mesa. Uma cerveja boa para o calor. Uma escolha ao calhas. Carne de porco com um molho chinês, dumplings de camarão (não tinham a perfeição estética dos congelados). Tudo bom. Mas difícil de dizer se por estarmos numa China com vista para Lisboa, se por ser realmente bom.
Depois, línguas de pato. Era impossível não comer as línguas de pato. Desde pequeno que me dizem que o jantar é línguas de perguntador. Línguas de pato deve ser o mais parecido com línguas de perguntador. Maiores do que um pinhão, boas, saborosas, com um pó de sal e tempero chinês (seria five spice?). Um rodela de limão. Muito agradável. A gordura, o crocante, o sal, o limão. A senhora ria muito. Narizes grandes a comer língua de pato...
Ventoinhas, pauzinhos de madeira, difíceis de separar, bons arrozes, boas sopas. Alguns ocidentais. Muitos chineses. O crítico de restaurantes é um oncologista. Poucas notícias boas num mar de desgraças. Há em todos os restaurantes um dur désir de durer (P. Éluard). Em todos menos neste restaurante chinês da Rua da Guia, que pode durar, ou não durar. Um restaurante que será onde se reunirem aquelas pessoas, com aquela comida.
Lourenço Viegas

Restaurante Chinês da Rua da Guia (Mouraria)
Lisboa

21.7.09 

Casa México (2/5)

A Casa México tem tanto a ver com o México como Os Maias do Eça de Queirós. É o México visto por portugueses, com aquela objectividade sofisticada desenvolvida numa viagem de finalistas, num cruzeiro, ou numa semana, oito dias sete noites tudo incluído em Punta Cana (que não é no México, mas para o efeito é igual).
A Casa México é na Avenida D. Carlos, mesmo ao lado do petulante Café República, quem desce à esquerda. A Avenida D. Carlos é bonita, como tudo o que acaba em rio e tem jacarandás que ficam roxos no tempo dos jacarandás. O restaurante só está aberto ao jantar, o que é meia boa-notícia.
Descem-se umas escadas. Empregados simpáticos, pouca luz. Grupos e casais, heterogenia estética, mix social. A fauna desenvolve-se, enjoativa e gordurenta, naquela sala escura, a que as margueritas dão um tom de alegria artificial (haverá outra?).
Guacamole à portuguesa, ainda mais baço e alcalino do que o normal, com uns totopos engordurados, servido de entrada (dizem que no México guacamole é sempre acompanhamento, ou molho de pratos e não prato em si).
Os camarões Vallarta, além de um aspecto muito pouco sensual, tinham travo e odor amargo que lembrava petróleo (mas que devia ser apenas do chili mal cozinhado). O tamanho dos camarões, a generosidade da dose, os 23 euros e meio, nada fazia prever aquele sabor.
Enchiladas de frango, sem história, a não ser que estavam quase frias. Tacos de bistec com uma carne péssima de consistência e sem sabor, acompanhados de uns feijões refritos com aspecto de terem sido re-re-reaquecidos num microondas, desidratados, pulverizados. Empanadas achiote feias e sem distinção de sabor nos recheio, gigantes pasteis de massa tenra.
Tento esquecer-me do que (me) está a acontecer. Relembro o caso Saltillo, o enjoo aumenta. Quero reconciliar-me com o local, mas nem o sorriso verdadeiro e bonito da empregada salva. Nem o pontapé do Negrete no Mundial de 86 me devolve uma ponta de vontade de até para mim fingir prazer (depois do masculino, o orgasmo gastronómico e o mais difícil e menos ético de simular).
Ando atento a sinais, será que é o Negrete a chave daquele restaurante, um homem que só marcava golos quando jogava com a camisola de clubes mexicanos ou da selecção mexicana? Será que é impossível haver bom México em Lisboa? Talvez. E a Hola? Pensa na Hola! Pensa na Hola! Mas só me vem à cabeça a condensa de Barcelona da iola, numa cadeira de rodas.
Não há mal que sempre dure. Excelentes arrozes, quer o branco, quer o mexicano, amarelado. Soltos, com sabor e personalidade. Quesadillas de cogumelos boas.
As sobremesas ok, umas mais mexicanas outras menos. Mais de 30 euros por pessoa. Em suma, nem mexicano, nem bom, nem barato.
Cá fora respira-se a Avenida D. Carlos, o ar fresco. É não olhar para trás. Talvez com os gases que se começam a formar nas furnas do meu ventre tenha uma insónia, o pretexto que falta para voltar à civilização d’Os Maias.
Lourenço Viegas

Casa México
Av D. Carlos I, 140 (Santos)
Lisboa

 

Chamuças (Ali kebab house)

Ali seja louvado

Há prazeres terríveis. Livros, cidades, corpos que não foram inventados por Deus para valerem pelo seu próprio bem, mas como espelhos que de jacto cospem à sua volta a luz que deviam guardar. Das coisas perfeitas, há assim as que luzem e as que reflectem. As que luzem apreciam-se em si e demoradamente. As que reflectem lançam-nos no abismo da comparação, na angústia de um brilho forte sobre um passado escuro.
Chamuças espelhadas são as do Ali, na Rua dos Fanqueiros.
As de carne, de frango que a vaca é sagrada e o porco é sujo, com um condimento leve e profundo, húmidas por dentro mas estaladiças por fora, com um recheio de boas cores. Surpreendentes. É um café com arca de gelados e televisão empoleirada, mas onde a cada chamuça a longitude se meridionaliza. É quando vemos que a televisão não mostra a Júlia Pinheiro no seu terrorismo proctoemocional, mas a BBC e o conflito do médio oriente, que a chamuça que se ia trincando deixa de ser apenas perfeita e nos faz engasgar. Precipitam-se na alma os milhares de chamuças comidas em milhares de outros cafés, atiradas para um pires largado no balcão com o ligeiro pivotear de quem joga uma manilha que sabe que vai ser cortada, duras, translúcidas de óleo, com um recheio de um amarelo suspeito a saber ao arroz à valenciana da semana anterior. Ali seja louvado por nos dar este prazer terrível da melhor chamuça de Lisboa.

Lourenço Viegas

Ali Kebab House
Rua dos Fanqueiros, 119.

 

Cova Funda (4/5)

Descer para subir

Não há, não pode haver, qualquer justificação para um estabelecimento aberto ao público se chamar Cova Funda. Cova é mau. Funda é pior. Cova é para onde todos vamos (já não é bem assim, agora que pegou moda a incineração). Cova é escondermo-nos. Cova é fossa. Funda é puxar para baixo a cova. Ainda se fosse da Piedade. Do Vapor. Ou Alta. Agora Funda...
Mas, como não há nada que não tenha explicação (ou como a angústia que causa ter no bolso uma coisa sem causa é mais do que suficiente para logo lhe inventar uma), eu acho que sei o que levou os donos daquele simpático restaurante no Bairro dos Actores a chamarem-lhe Cova Funda. Havia na Faculdade uma colega a quem toda a gente chamava a Maria Bexigosa. Ela própria se apresentava assim. Olhando de perto, lá estavam umas nicadas na pele, fósseis de antigas bexigas. Mas o sorriso, os olhos, o respirar, faziam esquecer rapidamente as crateras e o nome. E parecia mais bonita, por ser a Maria Bexigosa.
É, no fundo, marketing, ou branding, ou qualquer coisa acabada em ing. É conseguir descer as expectativas e afastar malta que escolhe os restaurantes pelo nome.
Ou seja, quem vai ao Cova Funda sem saber ao que vai espera o pior. Mas quando desce ao entrar, porque é daquelas coisas em que para subir é preciso descer, desce menos do que julgava que teria que descer para poder comer num restaurante com aquele nome. São poucos degraus.
Lá em baixo, os empregados são daqueles que parecem donos. Com a simpatia profissional de quem sorri em proveito próprio e não de um patrão chato. Na sala, gente conhecida. Não da televisão. Nem dos jornais. Conhecidas dos empregado-donos que ali mandam e uns dos outros. Como está a senhora? E a sua mãezinha?
Há famílias em harmonia. Aliás, se o Miguel Sousa Tavares um dia regressar do Brasil (para onde li que vai viver com a Maria João Pires) e passar pelo Cova Funda, arrisca-se a não achar que, depois de Dachau, o sítio menos agradável para se estar é num restaurante com os filhos dos outros a ladrarem.
Naquela sala de cadeiras de pau, toalhas bem engomadas, chão de mosaico hidráulico, a comida é quase sempre boa. E quase sempre quase toda. É, por isso um restaurante raro, em que arrisco um jogo de roleta-de-óbidos (desporto de azar que consiste em entrar num restaurante ao acaso e escolher um prato à sorte e que deve o seu nome à pitoresca vila portuguesa conhecida por ter, na menor área, o maior número de restaurantes caros e maus).

Peixe fresco, em vitrina, à espera de ser comido por aquela fome de peixe fresco que só há em Lisboa, cozido ou grelhado, escolha de legumes, acompanhado de boas batatas. Carnes honestas, cozido, cabeça de peixe, pica-pau do lombo (mesmo do lombo, tenro de comer à colher).
E as batatas fritas escorridas, caseiras, na cor certa. E se um livro não se pode julgar pela capa, uma batata frita pode julgar-se pelo tom de amarelo.

E o bolo por baixo da cereja é aquela tigela de alumínio onde vem a sopa, deixada no meio da mesa, para nos irmos servindo, num acto de afronta à cultura da unidose sopeira que se tornou dominante na restauração. Poucos gestos são de maior partilha e beleza do que alguém que serve aos outros umas conchas de sopa. Mesmo num sítio chamado Cova Funda.
Lourenço Viegas

Cova Funda - Rua Augusto Machado 3 A/B (Bairro dos Actores)
****
Bom

 

Taberna Ideal (4/5)

O ideal da esperança

Há coisas muito portuguesas. E não estou a falar da Pina Bausch, exemplo de como um nome (melódico) e uma imagem (sofrida) são elevados a arquétipo cultural, num provinciamento (deslumbramento provinciano) ingénuo e ridículo. Estou a falar da gastronímica, a arte, ou a ciência, que junta o restaurante ao nome da rua. Aliás, é um fenómeno mais lato: a filial portuguesa da empresa espanhola de abortos Clínica dos Arcos é na Rua da Mãe de Água...

A Taberna Ideal é na Rua da Esperança. E qualquer restaurante na Rua da Esperança sai a ganhar. Dispõe bem. Dispõe melhor do que se fosse numa daquelas ruas de profissões extintas, de santos esquecidos ou de um pedreiro de avental (mestre de tachos não gastronómicos) que abichou uma rua logo ali em 1911 – já para não falar em toda a toponímia esquerdalha do poder comunal (Pracetas Catarinas Eufémias, Avenidas do Poder Local).

Não se contentando com a Esperança da rua, a Taberna é Ideal no nome (já estará aprovado o loteamento para a demolida Ideal das Avenidas?). O estilo só pode ser comparado ao de uma antiga taberna por quem nunca entrou numa taberna. Tem muito pouco a ver – e felizmente. É confortável, bem decorada e sem o cheiro a vinho derramado. O nome é assim um acto de pseudo-slumming.
O tom é o daquela moda luso-retro que tem como papisa a Catarina Portas (juram-me que é mentira que vá ser candidata à Junta pelo PS depois de ter ficado com a concessão dos quiosques das bebidas). Um sado-revivalismo esteticamente interessante.
A ementa puxa ao regional (tiborna, xarém, alheiras), as janelas abertas dão ao sítio escuro uma claridade e leveza recomendáveis. Está-se bem na Taberna Ideal.
Os picos de matança com castanhas são banais e off-season, com um condimento muito presente. A carne simples, as castanhas a esfarelar.
Ovos mexidos com alheira de caça, agradáveis. O ovo liga bem com a alheira, bem seleccionada esta, menos bem aquele. Fatia de pão a acompanhar, na grossura certa.
Um xarém de bacalhau muito agradável, com tomate e ervas. Estava para o denso – prefiro-o mais corrido. Mas a densidade era cortada pelos elementos menos tradicionais, que, misturados na proporção certa, com uma lasca e uma cama de milho, davam uma garfada reconfortante.
Uma dúvida, que pairou em cada prato – mas que não sei resolver – é se não estaremos perante uma carta invernosa a que falta um solstício.
Bom bolo de cacau, morangos com chantilly. Uma sobremesa de figos confusa e enjoativa (isto não foi unânime).
No serviço, a simpatia e atenção ao cliente quase que fazem esquecer algumas falhas. Fica a nota de que induzem as mesas a partilhar pratos, nota muito positiva de combate às Tordesilhas que os portugueses desenham em qualquer mesa onde sentam os lusos rabos, muros de Berlim entre o meu-bife e o teu-bacalhau.
O preço de 14 euros por pessoa é o que se diz na rua que custa comer na Taberna Ideal (e normalmente a rua apregoa menos) e corresponde ao que se comeu e bebeu.
Pró que é, é bom. Não se espere mais. Não se transforme em menos.
E, já agora, sugere-se que instalem um multibancozinho, que o excesso de portipicalidade neste caso dá pouco jeito ao cliente.

Lourenço Viegas


Taberna Idela - Rua da Esperança
Bom
****

 

Casanostra (5/5)

Onde é que te apetece ir jantar?

Ao contrário do que poderia parecer a um incauto que abrisse os jornais, ligasse a televisão ou ouvisse as conversas ao pequeno-almoço na Praça das Flores, os portugueses não descobriram Darwin apenas no primeiro semestre de 2009. Não. Sei de fonte segura que muitos desses intelectuais já tinham ouvido falar de Darwin antes de terem ido duas vezes em Abril à exposição da Gulbenkian. Era o ano de 1999, dava-se a independência de Timor e nas notícias ouvia-se muito falar em Darwin, pois era a cidade australiana com o aeroporto onde se mudava de avião para chegar a Díli.
Voltando ao Darwin, o que importa é que tenho a certeza de que uma das características de desenvolvimento evolutivo das espécies é, além da oponibilidade do polegar, da estupefacção pelo sucesso de Mário Cláudio, a capacidade de distinguir entre um restaurante bom e um restaurante muito bom.

Um restaurante muito bom, como o Casanostra, aponta para um reino da subjectivia, império do critério infalível do onde é que te apetece ir jantar, como pergunta disparada, de surpresa num ambiente neutro desinfectado de desejos e constrangimentos. E onde apetece jantar dentro dos restaurantes bons são os restaurantes muito bons.

E o Casanostra nunca falhou nesse teste (e já lá vão mais anos a aplicá-lo do que gostaria), como nunca falhou a surpresa, o choque sempre repetido, o flash dado por aquelas cadeiras pintadas de verde (verde casanostra), por aquelas ventoinhas, as cadeiras na parede, o chão de marmorite. O Madame Tussauds de um certo Nova Iorque.
A ementa, as letras. As azeitonas, a pasta de queijo e de azeitona, nuns godés de vidro. O aparador, as luzes e a cablagem no tecto. A sala com o tamanho ideal. As casas de banho mansardas.
E vario o que lá como, como a conversa à mesa daqueles quase-amigos, sempre igual sempre diferente. A Torta (rotolo) de massa fresca com requeijão (ricotta) e espinafres envolta em papel de alumínio, um morgado gigante, um sabor e uma textura que se vão desenvolvendo, o ácido do pouco molho de tomate a cortar os sabores graves da massa e do requeijão, o sabor metalizado do espinafre. A língua bem temperada. O esparguete fresco alla cruadiola, tomate fresco, alcaparras, ervas e mozzarella, tudo à mistura. O sogno romano, de claras e doce de ovos, em forma de bolo de arroz, doce e salgado, leve e consistente.
E a água mineral italiana, sugerida por uma temperatura feita a janelas e ventoinhas, no limite do calor, a dar sede daquelas águas minerais italianas com e sem gás, e das portuguesas que se vão descobrindo entre as estrangeiras, por serem as que, acusando o calor, melhor se adaptam e ele.
É assim como a obra da Agustina, para quê começar outro livro, para quê ir jantar a outro lado se temos aquilo.
Lourenço Viegas


Casanostra - Bairro Alto

*****
muito bom

 

Zaafran (3/5)

O indiano que não pica

Admito que os restaurantes incha me atraem. Incha é uma denominação criada para a categoria de restaurantes de comida indiana e de comidas da China. Uma denominação criada quer dizer uma denominação inventada. Todas as denominações são inventadas.
O problema dos restaurantes incha é a bipolarização. Bipolarização quer dizer dois extremos, dois pólos (não quer dizer, como se escreve nos jornais, essas gaiolas de papagaios de clichés, o reforço de dois partidos situados ao centro). Dizia que os restaurantes incha ou são maus ou são bons. Não há nada no meio. O problema é que enquanto um restaurante indiano bom é normalmente mau e um restaurante indiano mau é normalmente bom, nos restaurantes chineses se passa exactamente o contrário: os restaurantes bons são bons, e os maus são maus.
Falta aos inchas coisas diferentes. Restaurantes que não sejam a desgraça culinária dos dragões dourados do chopesoi de amêndoas e lulas com ananás, mas que não sejam, por outro lado, o nihilismo do bom gosto das várias houses of Goa, de grades nas janelas e nossas senhoras de Fátima dentro de caravelas do Vasco da Gama.
O Zaafran entra no grupo dos poucos restaurantes de inspiração indiana, agradáveis ao toque, suaves na boca, com cuidados e onde se nota uma vontade de evolução (por exemplo, Tamarind).
É mesmo ali na rotunda da Estefânia, o centro ex-cêntrico da cidade. E o sítio está bem escolhido (e é útil para explicar, já que ninguém percebe o nome, e pedem sempre para repetir, é dizer que é o indianao mesmo na rotunda da Estefênia).
O serviço é familiar e pessoal (por oposição a impessoal), e isso é mais bom do que mau. A decoração estilo catálogo Área 2005, “ambiente exotic”. Preços a rondar os vinte e cinco euros por pessoa, com menu de almoço afixado à porta mais barato (não me recordo do preço, porque ninguém me falou dele lá dentro).
Um caril de gambas interessante, suave. O arroz, que nos inchas nunca falha, devia estar melhor, e não naquele género trincati (trinca e basmati).
O nan é bom, simples ou com queijo. Nan com queijo é assim como uma chamuça com azeite, mas nem fica mal. As chamuças estavam boas, fritas no ponto em óleos muito decentes.
Sobremesas suaves, mas com especiarias, excelentes (uns furos acima do resto). Por exemplo, o gajar halva, um purezinho de cenoura, morno, com pistáchio é reconfortante. E aqui uma marca no talão de caixa da vida, o momento em que se começa a gostar dos doces dos outros, aí onde se solta a última trela nacionalista.
O Zaafran é um restaurante interessante e novo, onde se pode levar a sogra porque não pica. Temos muito a ganhar se começar a arriscar nos sabores e a tentar surpreender a clientela que já é muita.


Lourenço Viegas
Zaafran

Largo D. Estefânia
***
Razoável

 

Isaura (3/5)

Na Feira do Livro dos Restaurantes

Há os que partem na frente e há os que ficam para trás. E nada mais há, para além dos dois pólos, na relação de uma coisa com o seu tempo. Os que se adiantam e os que se atrasam. Dessincronias são na cultura as duas únicas formas de relevância. Mas há coisas tramadas: é que num restaurante é mais difícil partir na frente e ainda mais difícil ficar para trás. Para os restaurantes não há memória, porque só há memória. Não há papel, discos, não há vídeos, não há gravadores digitais, não há youtube, não há nada. Só há presente. E o presente, o presente da mediania, é ingrato para quem não alinha nele.

É do Isaura de que falo e da sua laranja com groselha. O Isaura sobrevive. Mas sobrevive com a intensidade que a palavra tem nos obituários ingleses. Sobrevive como a laranja com groselha, inesperada naquela sala sem janelas forrada a garrafas, palco de coreografias que se vão vendo cada vez menos.
O Isaura está para a gastronomia como a Feira do Livro está para a literatura. Sítios onde cumprimos rituais mais do que fazermos aquilo que por lá se faz. Um bacalhau com migas muito forte, muito azeitado, demaziado (com zê). A lembrar que bacalhau não é para meninas (e repare-se na suavidade brutal de meninas junto a bacalhau, conseguindo ao mesmo tempo homofobia e misoginia).
Nestes sítios para além do tempo há que saber ir, não cair lá de chofre, como aqueles namorados alemães que olhavam incrédulos para as bancas da Feira do Livro, para a cara de frete dos vendedores dos barracões (que só sorriem quando dizem “ah queria esse livro? Pois esse não veio [para a feira, subentende-se]), para os casais deprimidos de escritores frustrados, parque acima e parque abaixo, com olhares esbugalhados, radares que varrem e sorvem trezentos e sessenta graus, na espera de uma aparência de reconhecimento.
No Isaura é ir directo às pataniscas, pequenas e bojudas, numa forma difícil de descrever que não seja testicular. E comê-las com a mão, mas sem ninguém ver, que ali, como na Feira do Livro, é normal olhar-se uns para os outros.
Cuidado, não caia nos bifes, castigados, castigados, castigados (a não ser que seja, como o embarcado da anedota, que pedia à prostituta que lhe fizesse uma certa e determinada coisa, mas o mais mal feito possível, não por não por lhe apetecer aquilo, mas apenas por estar com saudades da mulher).
É comida de hotel antigo, o melão com presunto a abrir, a laranja com groselha a fechar. Coreografias bem ensaiadas, mesas junto às paredes.
Diz quem sabe, que o Isaura tem a melhor garrafeira e o melhor escanção de Lisboa. E parece ter. E nisto dos vinhos, o que parece é.
Na carta do Isaura, uma adaptação à crise, “dez por dez”, dez pratos por dez euros. Smart move. A crise de quem vai ao Isaura é, claro está, uma crise psicológica e portanto nada melhor do que um remédio psicológico.
É como a laranja com groselha, que parece uma coisa de outrora (nisto da culinária normalmente o que parece não é) e que nos faz sentir bem mesmo depois de emergirmos à rua.
Lourenço Viegas

Isaura - Av. de Paris
*** Razoável

4.5.09 

Spot Chiado (4/6)

O problema dos verbos de cópula na restauração

Moda fora de um contexto estatístico é obsceno. Obsceno sem qualquer advérbio de modo. Toda a moda é o modo de sermos medianos. Mas oh Lourenço, as revistas onde escreve, os textos que escreve não se integram no universo do fazer e dizer a moda? Mais ou menos. Cá vai um exemplo a modos que ilustrativo. O roxo e o restaurante Spot do Chiado. Quando se diz que este ano está na moda o roxo é dizer, já se sabe, eu este ano vou andar de roxo porque toda a gente anda de roxo. E por que é que toda a gente anda de roxo? Porque o roxo é em si melhor do que o verde? Porque o roxo é em mim melhor do que o verde? Não. Porque o roxo é, está e mostra-se, nos outros. A moda explora as inseguranças. Só há moda do que se vê: não está na moda, ao fazer xixi, segurar a pilinha com o indicador das duas mãos (grip pauzinhos chineses) ou fazer uma tatuagem nas amígdalas.O Spot no Chiado está e é da moda. Na moda, e sobretudo na moda dos restaurantes, ser e estar andam normalmente associados. O desafio é o continuar permanecer (o pleno dos verbos de cópula). Porque os restaurantes não se pagam na moda, eles têm que sobreviver e só sobrevivem os bons (o break-even é sempre depois da moda). E o spot vai no bom caminho.O Spot do chiado funciona ali no teatro S. Luiz, ao lado. Não é preciso entrar no Teatro, felizmente (das coisas que mais me custa é ir ao restaurante de um sítio sem ir ao sítio - ir à Gulbenkian almoçar, sem ir à Gulbenkian - vejo o olhar de reprovação-condescendência dos securitas, como quando o olhar que pousou dois segundos mais num decote redondo sobe pelo vale, pescoço, queixo e encontra, também por breves momentos, uns olhos).O Spot é calmo, amplo e goza da graça de a sala estar um pouco rebaixada em relação a uma antecâmara da entrada. Vê-se a rua, a excitação das pessoas que chegam (normalmente bonitas e elegantes, habitantes de uma pós-moda em que já não se veste roxo, basta ir ao Spot). Isto enquanto se trinca o foie-gras fresco corado ou se recome a bica do sapato. Bacalhau fresco sobre à Braz, ou seja, as batatas em palito com ovo e cebola por baixo e uma posta de bacalhau fresco são sempre agradáveis, sobretudo depois de um começo com espetadas de camarão e molho exótico que deixaram tudo em aberto.Decoração genericamente agradável (embora os candeeiros tenham gravadas citações sobre teatro, o que me permite usar, finalmente, uma das mais ricas palavras do português, foleirote), serviço educado (sem arrogâncias – embora tenham percebido que o meu fato era da Maconde), simpático, a precisar de mais rapidez e atenção.Há acertos que se podem fazer: a bochecha de porco precisava de mais tempo e de menos espuma de batata.Mas a vantagem suprema está em agora haver um restaurante ali no Chiado que é restaurante (ou seja, não é café) e é bom (não é o disparate pegado de cadeias pseudo-japonesas, ou tascas de moelas para turistas). Bons hamburgers. Sobremesas excelentes. Espero que o strudel de banana lá continue, para lá da moda.

Lourenço Viegas

Spot (Teatro S. Luiz)

****Bom

 

Na cozinha com Nigella

Meia-Nigella

Um bom livro de cozinha é cocaína. Euforia, palpitações, prazer, ressaca.Uma lâmpada de Aladino que permite brilhar, reforçar o ego. Repetidamente. Por isso há tão poucos. A maior parte são maus e vivem das inseguranças do comprador: compra o livro porque quer cozinhar melhor e quando a receita sai enfadonha culpa-se a si e não ao livro.“Na cozinha com Nigella” fica a meio caminho. Um livro razoável, com receitas de apetecibilidade variável (muitas delas com bacon), encimadas com um conjunto de palermices da autora, realçadas por uma tradução feita a todo o vapor (“não é preciso amassar nem provar” (to prove é levedar, crescer); “aspecto de aveia consistente” (em vez de papas de aveia) “lista de coisas que tinha para fazer ainda por conferir” (to check é pôr um vêzinho, não é, neste caso, conferir); torrada francesa em vez de rabanada - p. 163, na p. 168 já está bem). São receitas rápidas. Mas o conceito é em parte um engodo (pés de cordeiro, temperados num dia, cozinhados noutro e comidos noutro recorre a uma noção de tempo curto relativa). Como em qualquer livro traduzido, há o choque cultural: “encomendar vieiras ao meu peixeiro”, “natas gordas”, “soro de leite”, “sal Maldon” “molho hoisin”, “cogumelos do choupo”. O apuro técnico das receitas varia (por exemplo, no frango com bacon e brandy não se refere sal – o do bacon não chega e o meu brandy não tem sal); o resultado também varia: a mousse de chocolate branco é deliciosa, o rolo de massa folhada com melaço não compensa o trabalho de encontrar o melaço.Mas talvez o maior equívoco do livro é o discurso directo de Nigella ser dirigido a mulheres. Como se as portuguesas de hoje cozinhassem, como se as portuguesas de ontem comprassem um livro escrito pelos olhos mais doces que a terra já viu, assim como se a Filipa Vacondeus e a Catarina Furtado tivessem tido uma filha geneticamente quitada.

***
Na cozinha com Nigella - Nigella Lawson - Civilização editora

Lourenço Viegas

 

Jules (6/6)

Isto é mentira.

Foi tudo uma combinação de acasos em cima da mais determinada vontade. Chama-se Júlio, tem 38 anos. É o melhor cozinheiro de Lisboa. É também um dos melhores do mundo. Até há 3 anos, por cá, ninguém o conhecia. Hoje, o seu restaurante Jules, no Parque Mayer, está reservado até Maio de 2010.Foi por acaso que desaguou, como sempre quis, no Parque Mayer. Um acaso parecido com o que trinta anos antes o tinha levado de Tondela para Saint-Raphael, na Dordogne, no sudoeste de França.Não fala muito do passado. Tinha cinco anos e uma mãe portuguesa. O pai, francês, havia de estar em França – e lá foram procurá-lo. Só apareceu passados uns anos, quando as feições de raposa do filho não deixavam dúvidas sobre o fruto da visita do talhante às Beiras, cinco anos antes, com um colega Português de tropa, primo da sua mãe, para fazerem a matança. “Parece um livro antigo, mas foi mesmo assim, em França nos finais dos anos setenta”. Quando o pai o reconheceu, passou a viver entre carnes, todos os dias depois da escola. Em casa, o resto do tempo, já o passava com a tia na cozinha (“a tia Nela estava sempre a aquecer água em várias panelas, nunca percebi bem para quê”).Queria cozinhar, mas estudou para talhante, “para herdar o talho do pai”. Quando conhecia miúdas dizia que estudava veterinária. “O talhante é o veterinário-legista”, diz, sem sorrir. Foi uma dessas miúdas, que acreditava que Júlio curava e não desmanchava ovelhas e vacas, que acabou por trazê-lo a Lisboa. Era Emma, filha de Danièle Mazet-Delpeuch cozinheira de Miterrand. “Como tinha aquele sonho, meti-lhe uma cunha, como vocês dizem”. A cunha resultou. Passados uns meses estava no Eliseu. Passados dois anos tinha o seu bistro. Em dez anos, duas estrelas Michelin e “ao todo um mês de férias”. Estava farto. Queria mais sol e mais folgas. Queria o Parque Mayer onde tinha ido à revista em pequeno, numas férias de Natal e com que sonhava todos os dias. “O Parque é o verdadeiro mundo de Oz. Nada disto existe, nada disto existia, mesmo quando existia”.Em França conheceu muitos portugueses influentes. Aliou o seu dinheiro à vontade de um Presidente de Câmara que não queria nem casinos, nem arquitectos, e comprou o Parque Mayer. “Normalmente teria esperado uns anos e voltado a Portugal e construído um ‘palácio’ em Tondela”. Mas sempre fez as coisas à sua maneira. O Parque Mayer seria o seu Angkor. Manter tudo como estava, as raízes, as ervas, “até as coristas mortas e emparedadas que dizem haver no Capitólio”. No restaurante, manteve a fachada. Uma rúnín de fachada. Lá dentro soalho. Vidro. Toalhas brancas, pratos brancos. Redondos. Talheres normais. Muitos empregados.A carta muda de dois em dois meses. Trinta mesas. Três pratos, uma sobremesa, trinta euros. Cabrito. Bacalhau. Pato. Porco, muito porco. Rosbife. Filetes. Panados. Tudo perfeito. Tudo escolhido das melhores quintas. Quem não escolhe são os clientes. Menu fixo. Há legumes, mas não há pratos vegetarianos. “É como pedir a um taxista para ir a viagem todo em ponto morto”.

Time Out, 1 de Abril
Jules
Parque Mayer
****** (Fora de série)
Lourenço Viegas

 

Pessoa (4/6)

Se eu fosse um copinho de Flan

A infância marca. Por mais que se diga que não e tal, marca. E a matéria das comidinhas marca especialmente: das madalenas do Proust, à comida estragada da mãe da Ruth Reichl, todos vão lá ter. Claro que já há praí quem se distancie destes memorialismo familiar e diga que faz percurso na gastronomia sem o mapa dos sabores de infância. Postas de pescada. Também tive um cunhado que cegou aos trinta anos e dizia que era igual ver ou não ver. Até que se matou.Acho que há duas infâncias gastronómicas, paralelas. A da comida, e a dos restaurantes. E nem sempre se cruzam. Duas escolas paralelas, uma bigamia que começa cedo. E depois, discute-se (ou seja, penso) muito, qual delas é a mais importante, a da comida em casa, ou a da comida fora. Não sei.Mas talvez sejam os restaurantes. Por exemplo, a “antiga casa Pessoa”, ali na esquina da R. de Santa Justa, é na minha pasta gastronómica, álbum dos sabores, um ficheiro enorme, daqueles jpegs de scanner com muitos megas, de uma definição enorme (talvez demasiado grande). Um colosso objectivo que extrema o subjectivismo da opinião. Era vir a Lisboa. Era ir “ao” Restaurante.E as coisas são sempre da mesma maneira.Um cocktail de camarão mais fresco e mais brando do que o normal, também menos frio, menos aguado. Um bom equilíbrio, uma funda memória, um sorriso hoje na mesa quando o peço. Acho que já há uma geração que associa cocktail de camarão a uma bebida exótica, um shot róseo, ou uma coisa assim.Depois uns filetes de pescada, altos, lascantes, uma carapaça boa e escura (mais grossa e um pouco mais escura do que prefiro na realidade – sim porque este restaurante está na linha da memória, não na linha da realidade). Com um arroz atomatado, seco e solto, rafado, espalhado. Um belo esparregado, verdedeiro (com três “es”, de verde, caso os escrupulosos editores da revista decidam passar verdedeiro a verdadeiro), sem aquelas raias ou grumos de farinha diluída que são a base da maioria dos esparregados (dizia sempre o meu pai que os restaurantes de Lisboa fazem o esparregado com a relva que compram aos jardineiros da Câmara, numa eco-candonga centenária – e ainda não ouvi ninguém desmentir).Depois, já sem fome, uns panados, por tradição, porque já bastava o que foi e o que se segue. Mas é tão difícil não querer os panados. Como uma área de serviço em que sempre se parou, e que se volta a parar, mesmo sem se necessitar de pôr gasolina, tirar xixi, ou meter café.E no fim o pudm flan de copinho. Gosto pouco ou mesmo nada de objectos, mas dos poucos que me caem no goto é o copinho de flan, de alumínio riscado, amolgado, leve, nicado, que enforma há décadas, todos os dias, um flan diferente, e ali fica na montra à espera que a mão de um empregado, mecânica, com uma robustez terna, lhe pegue, o vire para o prato de um cliente saudosista e o ponha de lado, para no outro dia ser cheio e refrigerado e montrado e virado.Uma questão fundamental, a questão fundamental, foi posta por Ruy Belo, “onde estarei eu hoje em pequeno?”. No Pessoa.

Restaurante Pessoa
Rua dos Douradoures 190
Bom ****

4.3.09 

Basmati

O arroz que dá sede

Há comidas que dão fome e há comidas que dão sede. O arroz basmati dá sede. A comida que dá fome é diferente da comida que dá sede, e a diferença está mais no que tira do que no que dá. A comida que dá sede, tira a sede. E nada mais inquietante do que nos dar a sede e nada mais reconfortante do que a sede nos ser tirada.

Tenho com este grão asiático a mesma relação que certos artistas com um pó afegão (e não é de arroz, essoutro pó... de arroz – falsete – lá lá lá). O arroz normal dá fome. O arroz basmati dá sede.

Também há mulheres que dão sede, mulheres com cheiro de líchia. Mulheres que dão fome são as mulheres com cheiro de charcutaria. O arroz basmati é fácil de fazer e delicado de comer (o outro, o arroz normal, é delicado ao fazer e bruto ao comer). O arroz basmati fumega melhor, vapor fragrante, e pode ser comido só. Comprado num qualquer supermercado com preocupações de comércio justo, fica mais pesado no bolso mas mais leve na alma, e sentimo-nos, a cada garfada, verdadeiros abolicionistas.

O arroz basmati é o que melhor embebe de molhanga exótica. E por aqui devemos ficar. É que usar basmati em arroz doce, arroz de polvo, arroz de grelos, de carne ou de bacalhau devia ser punido com pena mediacapital (reencarnação infinita dentro de um telejornal de sexta-feira da TVI).

Lourenço Viegas

20.2.09 

Manuel Caçador (4/6)

O escondarijo

O Manuel Caçador é o caixote do lixo do Michel Roux Jr. "Uma cabeça de peixe num caixote do lixo faz-me chorar" disse o Michel Roux Jr, do Le Gavroche (Londres), há uns dias, ao Telegraph, queixando-se da falta de sensibilidade dos jovens cozinheiros.
Tem toda a razão, o rapaz. Num mundo de esquisitinhos e desperdício vai sendo difícil quem goste de extremidades. Patas de galinha, cabeças de peixe, cristas de galo, pés de carneiro, rabos de boi, enchem os caixotes do lixo.Como uma cabeça de garoupa há poucas coisas no mundo. Talvez uma cabeça de pargo.
O modo como eu vejo uma refeição perfeita assemelha-se, já o tenho escrito várias vezes (e falha-me a criatividade para mudar o exemplo), a um comboio de alta velocidade na planície. Tem que haver evolução na continuidade. Consistência irradiante. Coerência dinâmica. Por exemplo, um bom bife é bom, mas não irradia; bom caviar irradia, mas não é consistente. Bacalhau à Brás é coerente, mas não é dinâmico; arroz de marisco é dinâmico mas não é coerente. E por aí fora.
A cabeça de peixe tem tudo. Da extremidade do corte à ponta do lábio os sabores evoluem, pedem ao cirurgião canibal (peixibal) que vá avançando, que vá experimentando. E de olhos fechados sabemos onde estamos: na almofada carnuda do colarinho (nacos que abrem o caminho, como um troço de cidade antes da velocidade máxima, na viagem de comboio), depois junto à espinha, lombos em agulha transversais ao crâneo; as bochechas em disco ou amígdala que saltam deslizantes da sua cavidade com a graça que antecede a entrega. Depois, começam as gelatinas: a língua e o freio que a prende; as cartilagens em volta, lipoaspiração bucal. Pensar que tudo começou com uns nacos de peixe normal e já aqui vamos em sabores intrincados e untosos. Uma carcaça no meio da travessa, estátua de um respeitoso poder do homem sobre o bicho. E é na busca de tudo isto que todos andamos.
Por exemplo, os enófilos dizem que um bom vinho evolui durante uma refeição (o que é o mesmo que dizer que o assento de um bom carro evolui durante uma viagem...); os matrimoniófilos dizem que as metades evoluem juntas durante a relação (em termos de aritmética, devíamos abandonar a visão paritária e ir para a dos terços: em vez de a minha metade, diríamos o meu outro terço, ou os meus dois terços, conforme o caso, e andaríamos menos enganados). Se poucas coisas evoluem como uma cabeça de peixe, nenhuma termina com o prazer do olho, do toucinho em volta, graal de sucos estranhos.
Comer uma cabeça de peixe é quase independente do restaurante (os restaurantes de cabeça de peixe são isomorfos). Escondidos, numa sala banal de janelas em fresta numa Lisboa de fim do mundo (que podia ser Abrantes ou Badajoz), com babetes, uma seita estranha, heterogénea, que almoça orgiasticamente, sem horários, esconde-se por trás de um nome, Manuel Caçador, assim cunhado para enganar quem passa.

P.S – No Manuel Caçador, há também comida normal boa (nalguns casos razoável), sobremesas apetitosas e petiscos variados.

Manuel Caçador (Areeiro)
****bom

 

O Madeirense - Amoreiras (2/6)

Sensação Truman Show

Sempre que vou ao restaurante o Madeirense tenho aquela sensação Truman Show. O Truman Show é um filme em que um personagem, sem saber, vive dentro de um programa de televisão desde que nasceu; às tantas começa a desconfiar de que tudo aquilo é encenado. Uma sensação Truman Show é estarmos num sítio e começarmos a achar que à nossa volta tudo é combinado, que não pode ser real. Que alguém, com um walkie-talkie, ou um auricular mandou entrar, antes de nós, uma série de figurantes que irradiam felicidade, e que riem e falam como se fossem espanhóis, e comem espetadas atrás de espetadas.Parece mesmo um cenário. Dentro das Amoreiras, ao fundo, uma portinha típica (estilo Portugal dos pequeninos meets cinecitá) e depois lá dentro um aspecto de saloon dentro de um ferry boat, com apontamentos etno-kitsh.
Mas não é só o cenário de bar de paquete. É a comida. É o preço. Espetada do lombo em pau de loureiro. Nacos de carne tristes, três deles com sabor a crematório, outros tantos menos estorricados. Batatas fritas ensopadas em gordura. Talvez seja melhor a espetada de dez euros, que esta de dezanove... tão pouco por tanto... Banalidade estorricada.E gente, muita gente. Muitas mulheres. Empresárias. Sucesso no feminino, que é sempre mais impoluto, mas mais agreste. Comem os pratos do dia, servidos por empregados (simpáticos, eficientes, trabalhadores, incansáveis) vestidos em trajes típicos da Madeira, o que causa aquele desconforto de feira-medieval, aquele constrangimento de festa de Natal da quarta classe.Os restaurantes típicos são como as exposições mundiais. Coisas de outros tempos, antes da invenção da fotografia, da televisão, da internet.E no prato, uns filetes de peixe-espada, que abstraídos do prato em que vieram à mesa quase que alcançavam um razoável patamar, mas destruídos por um molho de maracujá. Sim, molho de maracujá, líquido. Se qualquer líquido mata quaisquer filetes (e aqui ainda ficamos pelo domínio da física, da química e da hidráulica) um molho de maracujá torna a experiência grotesca (e aqui entramos na gastronomia).
Pode dizer-se que há muita gente que gosta. Não duvido. Há quem leia Paulo Coelho, há quem veja o Prós e Contras. Há até quem não coma sopa. Mas basta fechar os olhos; salivar um pouco; pensar no sabor de filetes de peixe; o que vem a seguir na boca? Arroz de tomate? Maionese? Molho tártaro? Vinho branco? Qualquer coisa. Tudo. Tudo menos molho de maracujá (cítrico-exótico). Já nem refiro as míni cenouras, clonadas, parecidas com aquelas que se compram na secção de congelados de uma qualquer grande superfície, nem à banana práli atirada.
Com o café vem um pastel de nata. Bom na coisa, péssimo na atitude. É que cobrar por uma gourmandise não solicitada que se oferece com o café é uma pelintrice injustificada em qualquer restaurante em qualquer parte do mundo, ainda menos justificada quando se cobra mais de trinta euros por pessoa (já chegámos à Madeira, ou quê?). Ninguém diz nada. É "o" Madeirense. Pois.Sai-se. Fecha-se a portinha. Lá atrás ia jurar que uma voz grita corta, aos vossos lugares.

Lourenço Viegas

O Madeirense (CC Amoreiras)

Mau **

 

Coelho da Rocha (4/6)

Pratos do dia

Seguindo o cânone tradicional da crítica gastronómica portuguesa (onde pontuam verdadeiros Anaximandros), os próximos parágrafos seriam dedicados à descrição geográfica do lindo bairro de Campo de Ourique, sua toponímia, sua gente e seus costumes. Impossível. Campo de Ourique fascina-me tanto como um puzzle de 5.000 peças dos anjinhos do Botticelli. Não tem metro. Não tem lugares para estacionar. Tem caca de cão. Tem, a qualquer hora, engarrafamentos lentos. Lojas decrépitas ou pretensiosas. Uma lógica de circulação comparável à medina de Fez. A sua toponímia cheira a caciques com nome de rua, de regimes passados, pais, ou irmãos de algumas das múmias que se passeiam, com cãezinhos, que trémulos e de pelo rafado, lá vão expelindo mais umas caquitas.
Talvez seja do tempo (ou da falta dele) que enquanto refeiçoava no Coelho da Rocha, ali em Campo de Ourique, não me saia da cabeça a voz dela a querer saber a opinião sobre pratos do dia.
Há quem ache que sim, que se deve pedir sempre os pratos do dia, e há quem diga que não, que se deve evitá-los. Sobre isto não tive, até agora, opinião. A questão dos pratos do dia não era para mim uma questão. Há coisas que só nas mentes mais pequenas – ou nas maiores – são questões. Mas não é possível, Lourenço, você que tem ideias sobre tudo, não ter opinião sobre os pratos do dia. Tentei fazer, para ganhar tempo, para mudar a conversa, para que se calasse, sei lá, uma chalaça, bem boa por acaso, pratos do dia? Não sabia que vendiam pratos no Dia, mas são de certeza piores do que os do Lidl. Mas chega-se a uma idade em que nos devemos ir preocupando não com as questões sem resposta, mas com as respostas sem questão.
Regurgitando sobre a questão dos pratos do dia percebi que depende. Depende dos restaurantes, das cartas. Há-os onde nunca dou aos pratos do dia mais do que uma olhada rápida, sobranceira. Mas há restaurantes em que a carta-carta, aquela que não muda, me assusta. Está escrita com uma letras – ou solta uma energia – como quem diz, há anos que ninguém pede nada daqui, veja antes os pratos do dia no papelucho preso com um clip escrito com letra de guarda-livros zeloso. É assim, com este critério de navegação à vista, que lá vou nuns sítios pedindo pratos do dia, noutros pratos do ano.
No Coelho da Rocha são os pratos do dia. Normalmente à vista de quem passa, em travessa ou tabuleiro. Um pargo forte, digno, de boa lasca, bom tempero, servido generosamente. Um empada de perdiz, com o o bicho bem cozinhado, redondo, epicée, sem aguadilha, tudo ligado. E aquele leitão de mastigar com a língua, leitinho da alma, com molho suave. Bons grelos na empada, boas batatas no leitão.
Encharcada de ovos de sobremesa doce. Serviço agri-doce, com os açúcares a aumentarem na medida da frequência.

**** Bom
Coelho da Rocha

3.2.09 

Bénard (2/6)

Restaurante em tempo de chuva

Tinha um amigo que fazia o seguinte número: telefonava a perguntar "não te está a apetecer ir comer um bife à Bénard?". Era normalmente no Inverno e raramente recuso propostas. Quando lá chegávamos, eu pedia um bife e ele dizia que não queria nada, só uma água das pedras, por favor, mas que me fazia companhia. Ele gostava de ir à Bénard. Não de almoçar na Bénard. Era um sábio.Lisboa tem quatro estações: a chuva, o frio, o quente e a fresca. E para cada uma destas estações apetece um restaurante diferente. Apesar de muita chuva (e sei que esta verdade é pouco estatística), Lisboa tem poucos restaurantes de chuva. Restaurantes que protegem da chuva, mas cujo conforto depende de esta continuar a cair lá fora.Há pouco disso em Lisboa. Assim de repente, há o na Ordem com Luís Suspiro, descontando a Gago Coutinho e a chuva que tem que se apanhar antes de lá entrar. Fica assim talvez apenas a Bénard, a provocar aquele sentimento de saída-do-cinema-e-já-é-de-noite mas invertido. A entrada num útero de prazeres da boca, do nariz. Gente quente e aquecida, que nos seca. Fecha-se o guarda-chuva. Entra-se em passada larga.Os croissants, os famosos croissants da Bénard, ali ao lado direito, debaixo de uma luz e de um celofane, como galinhas de aviário. Ah, como eu adoro os croissants da Bénard, diz quem normalmente fala de cor e repete sabores-comuns. Lá estão eles, a olhar para nós, verdadeiros pilares da mitologia Lisboeta, que não passam de uma terceira divisão de um campeonato mais sério, ou mais global, de pastelaria. Os portugueses têm uma relação com os croissants muito próxima da que têm com a pontualidade: não faz parte. A vantagem do restaurante da Bénard, além do abrigo de chuva, é não termos que passar o teste da caixa do pré-pagamento, experiência muitas vezes traumática. Está quentinha a sala. Gezellig (que é "quentinho" em holandês). Também deve estar quente a frigideira, já que o bife aparece no prato estorricado, se bem que não seja crime capital estorricar carne de maus lombos com molho estranho (diziam ser marrare). Merecia mais respeito. Batatas razoáveis. Croquetes argamassentos, carnes muito temperadas, uma pasta daquelas que, na goela, nem para cima nem para baixo, salada sem pinga de tempero. Intragável. E o que faz um bom croquete raiar o belo, faz um mau croquete descer ao pântano do horrível.Salvaram o panorama uns filetes de peixe, com arroz solto e malandro de bivalves.No fim, um bom pudim, já que o bolo teve que ficar para uma vez em que não tivesse um mosquito a passear-se dengosamente nas suas cavidades.O serviço é bom, com requintes, atencioso. Só falta a comida ser boa e o preço aceitável. Cinco contos é muito dinheiro para nos abrigarmos da chuva. Por melhor que seja a sala, por mais raro que seja tal nível de conforto na cidade dos barulhos e das correntes de ar, um restaurante é sobretudo aquilo que se come e o que se paga pelo que se come. A chuva vai continuar. A quem é que vamos telefonar a perguntar se não lhe apetece ir comer um bife à Bénard?

Bénard
** Mau
Chiado

 

Sommer (3/6)

Momento crítico

Abriu em Lisboa, há uns tempos, um novo restaurante. E isto não é novidade. Os restaurantes, como as pessoas, nascem e morrem. Mas abrir um restaurante é parir em Kabul.O Sommer está num momento crítico, e o médico tem de vir à sala, à família, e encolher os ombros naquele jeito arrepiante de quem parece saber mais e pior do que diz. As falhas não são tantas que seja mau, as coisas boas não são tantas nem suficientes para que seja bom. É razoável.E isto era bom, se não fosse mau. É que um restaurante como o Sommer (novo, ambicioso, bonito, feito de gente que pensa a comida) tem que ser bom, senão – certo, certinho – a breve trecho é mau. O gume do razoável é muito afiado para a modernidade. E isto são as más novas.A boa nova é que tudo o que não é bom é patente e parece corrigível (o pior para o crítico, o pior para o restaurante, é quando o que é mau, está difuso, impregnado, blurred).A tranche de garoupa com batata confitada em azeite de alecrim não tinha um pingo, uma ponta, um grão de sal. Excluindo-se opção deliberada do chefe por razão gastronómica, ou dietética, está-se perante um lapso facilmente corrigível: é pôr sal na tranche e esta passa do incomestível ao bom.Menos health-minded estava o lombinho do porco em sangue, muito sangue, e a minha avô lá de cima, o porco sempre bem passado. Uma pena, porque o couscous estava excelente, achouriçado no sabor, solto, pontuado com grelos (de couve?), e o lombo, não fosse a sangria, parecia de boas famílias.Entradas agradáveis e boas: salada de pato confitado interessante e equilibrada, boas vieiras com um purezinho por baixo, muito bom o creme de couve-flor com queijo da ilha, demasiado pesado para algumas pessoas. Os peixinhos-da-horta (não tanto quanto os fish and chips) ficam sempre piores por não serem feitos à antiga portuguesa e perdem-se na tempurização. Linguini com queijo de Serpa escorregadio, nozes ensopadas.Bom taco de bacalhau de meia cura com espargos verdes (bons, no ponto).Bife do lombo com melhor aspecto do que sabor, a ser salvo pelo ovo de codorniz a cavalo (à escala, a pónei). Batatas em paralelepípedo grosso – uma boa ideia, que agora só falta pôr em prática – é que a forma não pode matar a textura e o sabor (o interior esfarela ou encrua).Nas sobremesas, também altos e baixos. Bom o crème-brulée Sommer, acastanhado, parece que sabe a caramelo ou café, mas sem ser demais, a estalar bem. Mousse de chocolate normal, com praliné por cima, mau, a saber a bombom velho, que já fez dois Natais sem sair da caixa.O serviço tem tanto de simpático como de descoordenado - parece que falta chicote, aquele olhar que há sempre nos restaurantes que sobrevivem, alguém que esteja em todas as mesas e nenhuma, e também alguém na zona do passe entre a cozinha e a sala mais atento, mais exigente. O Sommer será o que exigirem dele. E é um favor que lhe fazem. E a nós. É que faltam sítios assim à cidade, sobretudo ao almoço, para nos sentirmos tranquilos, numa sala ampla e bonita, a cheirar o rio e a ver o movimento de uma estação de correios.

***razoável
Rua da Moeda, 1-K

2.2.09 

2009

2009 - Método DáCe - Desconfiar - Arriscar - Confiar - Experimentar


Todos os anos, por esta altura, o mundo está quase quase quase a acabar. É antes do Natal, momentos em que sofregamente se marcam jantares, como se fôssemos morrer no dia 25 e nos tivéssemos de despedir de tudo e de todos até ao bater da fatídica badalada. O Natal do Senhor é a Páscoa do Homem. No ano Novo renascemos. E aqui manda a praxe que se façam planos. Que se olhe em frente. Na verdade olhar em frente é apenas um modo de esquecer aqueles dias atrás em que tudo ia acabar. Se precisar de esquecer o jantar da empresa, a consoada comprada numa loja de tias, ou o pegajoso da calda dos sonhos que só lhe largou os dedos em 2009 aqui ficam quatro tópicos para comer bem no ano que temos pela frente.
É uma proposta de ideais contraditórias: confiar, desconfiar, improvisar e praticar.

Desconfiar. Desconfie de empregados que não conhecem a carta. Desconfie de buffets. Desconfie de menus temáticos. Desconfie se não lhe mostrarem a ementa. Desconfie de chefes cuja formação culinária se fez a almoçar no bar da faculdade. Desconfie dos críticos deslumbráveis. Desconfie dos canalizadores electricistas que tanto escrevem de vinhos como de comida. Desconfie de cozinheiros saltitões. Desconfie se for mal tratado. Desconfie de restaurantes que o enganam nas contas. Desconfie de recomendações de amigos que não se lembram o que é que comeram no restaurante que recomendam. Desconfie de saladas excelentes. Desconfie. O dinheiro é seu. A tripa é sua. O tempo é seu. Não coma o que os outros lhe querem enfiar pela goela abaixo. Desconfie.

Praticar (em casa). Comer fora é um desporto da boca e do espírito. Há ganhar, há perder. Ir a um restaurante é poder pontuar. Treine-se em casa. Aguce os sentidos. É preciso estudar. Saber distinguir batatas fritas congeladas de verdadeiras. Peixe fresco de congelado. Dourada de mar, de dourada de aviário. Ir construindo uma memória. Um padrão.


Arriscar. Sem preconceitos. Não ligue a modas. Explore Lisboa, sem rede. Dê uma chance ao acaso (por exemplo, usando o método "d-e-d-e", saia de casa, ou do trabalho, vire para a direita, depois na primeira à esquerda, primeira à direita e primeira à esquerda e coma no primeiro restaurante ou café que aparecer – pode enviar o resultado para a TimeOut). Experimente restaurantes de etnias variadas. Pergunte ao ucraniano da Tv Cabo onde é que ele almoça ao Domingo.

Confiar. Mas como quem não confia não é de confiar, confie em ementas tradicionais. Confie no seu instinto. Confie em dicas de homens gordos. E acima de tudo confie nas estrelas da Time Out. É caro? Poupe nos almoços gordurentos, leve comida de casa para o emprego. Ao fim de um mês experimente um bom restaurante (um 5 ou 6 estrelas da TimeOut ou, se não puder, um qualquer com estrela Michelin).

Lourenço Viegas

31.12.08 

O Polícia (3/6)

Polícia bom, Polícia mau

Os restaurantes são como tudo. Às vezes somos bem tratados, às vezes somos mal tratados. Por exemplo, na Mexicana, já se sabe, tratam-nos mal. Mas quererem-nos lá: é o mau trato conjugal. Há restaurantes onde nos tratam bem, por exemplo no Xanti, mas fica sempre a dúvida se lá somos queridos ou não. No Polícia tratam-nos mal e não nos querem lá – pelo menos por muito tempo.
Se o mal tem uma lógica, e dizem que tem, há mais justificação para o massacre no Ruanda do que para o empregado do Polícia ter levantado sempre os pratos antes do último comensal ter acabado. Há mais justificação para os professores não quererem ser avaliados do que para as esperas que o empregado ia fazendo à mesa, sedento de um pedido expedito. Às vezes até sorria. Era o polícia bom dentro do polícia mau, numa matrioska securitária. No dia em que um Eng.º Salpico aparece na televisão a falar da segurança rodoviária e dos lençóis de água, bata-se a pala ao restaurante o Polícia, que não podia chamar-se de outro modo.
A batata é o vegetal mais consumido no mundo e o caldo verde do Polícia tem a sua fatia no queijinho da estatística da FAO. Um caldo verde normal no sabor, demasiado abatatado na consistência, talvez para suster o agradável enchido de Lamego.
E lá veio a língua, deixada no meio da mesa a olhar para nós, comam-me rápido que ele não tarda em levantar os pratos, dizia (mas baixinho, não fosse o sô guarda ouvir). E fez o seu papel, tenra, tenra, tenra, como só a língua sabe ser, bem acondimentada, suave, macia, redonda. Língua de mastigar com a língua, com a língua lambilonga lambilenta (a laboriosa língua do poema do Drummond).
Os filetes de peixe galo com arroz (solto?!? – que jeito dá a notação do xadrez) são interessantes mas muito abaixo do alarido e dos vinte e cinco euros. O filete é como o croquete, deve haver unidade concepto-bucal entre o exterior e o interior, uma ligação visual, aromática, acústica (um dia explico melhor a importância do som que a comida toca). E aqui estavam muito presentes, mas cada um para seu lado, os sabores do peixe e da crosta. Mousse de chocolate má, baça, boa trouxa-de-ovos, crispy de sabor, molhada de textura.
Preços de outrora (ou seja, demasiado altos), fauna de outrora-agora (ou seja, dos zero aos cem). Como aquelas mulheres a quem só bate o marido, a mim só me tratam mal na Mexicana. Pode ser, é possível que seja, conversa de enjeitado, vitimização restauracional. De alguém que já não quer ser bem tratado, mas apenas almeja não ser maltratado. É que a quadra é propensa à lamecha.

O Polícia

*** Razoável

Rua Marquês Sá da Bandeira, 112A. 21 796 3505. Fecha ao sábado ao jantar, domingo e feriados

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.

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